O Legado de Lina Bo Bardi: Arquitetura Social no Brasil
Descubra como suas obras não só redefiniram o papel dos edifícios na cidade, mas também promoveram a interação social, a inclusão e o uso coletivo do espaço urbano, refletindo uma arquitetura que se constrói e se transforma junto com as pessoas.
ARQUITETURA E URBANISMO
Lina Bo Bardi (1914–1992) é uma referência incontornável da arquitetura brasileira. Nascida na Itália, radicou-se em São Paulo a partir de 1946, dedicando sua carreira à criação de espaços que valorizassem a vida cotidiana das pessoas. Seu olhar sensível para as práticas culturais e sociais brasileiras resultou em projetos que mesclam rigor técnico, inventividade e comprometimento com a coletividade. Entre suas criações mais emblemáticas estão o SESC Pompeia, um centro cultural e esportivo que transformou uma antiga fábrica de tambores, e o Museu de Arte de São Paulo (MASP), cuja proposta de edifício-ícone redefiniu o conceito de museu no país. Este artigo busca analisar como essas duas obras expressam o caráter social da produção arquitetônica de Lina, explorando as soluções espaciais, os materiais e as estratégias de apropriação comunitária.
Lina Bo Bardi e a arquitetura como prática social
Desde o início de sua trajetória no Brasil, Lina Bo Bardi contestou a ideia de “autor solitário” do arquiteto. Para ela, projetar era sobretudo ativar redes de trocas culturais e sociais. Inspirada por movimentos modernistas que valorizavam o potencial transformador da arquitetura, buscou aproximar-se da realidade brasileira — especialmente de populações periféricas ou pouco atendidas por políticas culturais oficiais. Em seus escritos e no periódico Habitar, fundado em 1953, insistiu na necessidade de democratizar o acesso aos espaços de arte, lazer e convivência.
Lina defendia que a arquitetura deveria ser “um organismo em permanente construção”, capaz de acolher diversas práticas — desde o esporte à apresentação teatral, da exposição de arte à simples conversa de rua. Esse viés social é recorrente em seus projetos: a requalificação adaptativa, o uso de materiais locais, a valorização do acúmulo informal de memórias e a flexibilidade dos espaços para receber diferentes públicos são marcas registradas de sua obra.
SESC Pompeia: do pavilhão industrial ao espaço de convivência múltipla
O SESC Pompeia nasceu da transformação de uma fábrica de tambores abandonada, inaugurada originalmente em 1936. Em meados dos anos 1970, o Serviço Social do Comércio adquiriu o terreno e convidou Lina para coordenar o projeto de implantação de um centro cultural, esportivo e de lazer. A proposta buscava atender trabalhadores do comércio e comunidades vizinhas, oferecendo atividades gratuitas ou a preços subsidiados.
Lina concebeu o SESC Pompeia como um complexo fragmentado, composto por cinco volumes independentes — cada um destinado a uma função específica (ginásio, teatro, biblioteca, piscinas, oficinas). Esses “blocos” se articulam por meio de passarelas, rampas e pátios abertos, criando percursos que exploram a topografia original e favorecem o encontro espontâneo entre visitantes.
Estratégias formais e espaciais
Um dos principais recursos formais é a preservação e o destaque das estruturas metálicas originais da fábrica. As vigas, colunas e beirais externos permanecem aparentes, em diálogo com novos elementos de concreto aparente. Essa justaposição entre o antigo e o novo gera uma estética única: o urbano bruto de um lado, a leveza das coberturas e marquises de outro.
A distribuição dos volumes em níveis variados intensifica a sensação de descoberta. Ao percorrer as rampas de acesso, o usuário vislumbra diferentes angulações do conjunto, enxerga recantos de convivência, jardins internos e lajes de concreto que servem como platôs de descanso. Essa experiência sequencial rompe com o “edifício fechado” típico de espaços culturais, convidando o público a se apropriar livremente das áreas.
Impacto social e legado participativo
Desde sua inauguração, em 1986, o SESC Pompeia tornou-se um modelo de requalificação urbana e cultural. As oficinas de artes manuais, as salas de leitura, as quadras multiuso e o teatro ofereceram alternativas de lazer acessíveis para moradores da Pompeia e bairros vizinhos. A flexibilidade do projeto permitiu, ainda, a realização de festas comunitárias, eventos de música popular e programas de inclusão social.
O caráter participativo consolida-se na relação com a comunidade: muitos dos jardins internos foram projetados com o envolvimento de grupos locais, e as áreas externas abrigam feiras de artesanato e eventos de rua. Em síntese, o SESC Pompeia exemplifica o ideal de Lina Bo Bardi de “arquitetura viva”, em que o edifício só se completa quando ocupado e praticado.
MASP: o museu suspenso como manifesto de transparência
O Museu de Arte de São Paulo, criado em 1947, ganhou em 1957 um novo edifício projetado por Lina Bo Bardi em parceria com Pietro Maria Bardi, seu marido. Inaugurado em 1968 na Avenida Paulista, o MASP surpreendeu o meio arquitetônico ao apresentar um bloco de concreto armado em balanço, suspenso por quatro pilares vermelhos, sobre um vão livre de 74 metros.
Essa decisão atendeu a uma proposta museológica radical: criar um espaço de exposição sem paredes internas fixas, onde as obras se dispõem em cavaletes transparentes de vidro e aço. O vão livre no térreo transformou-se em praça urbana aberta, estimulando a circulação livre de pedestres e o uso do espaço para atividades externas.
Transparência e democratização do acervo
A valorização da transparência — metafórica e literal — é central no MASP. Os grandes painéis de vidro laterais permitem a entrada abundante de luz natural, reduzindo a sensação de confinamento típica de museus tradicionais. Já a escolha dos cavaletes para expor as obras rompe com o “museu como templo”: as paredes não mais determinam a hierarquia ou sequência das peças, cabendo ao visitante criar seu próprio percurso.
Essa configuração reforça o caráter social: o museu deixa de ser um espaço elitista e fechado, voltado apenas a especialistas, e se converte em um equipamento urbano aberto a todos. O vazio sob o platô e as áreas laterais são ocupados por manifestações culturais, protestos e performances de rua, tornando o MASP um ponto de encontro e debate público.
Críticas e reinterpretações
Apesar de admirado internacionalmente, o MASP também suscitou críticas sobre a eficiência térmica dos grandes painéis de vidro e a conservação das obras expostas à luz natural. Em reformas posteriores, foram feitos ajustes no controle de luminosidade e climatização. Ainda assim, a obra de Lina mantém intacto seu valor simbólico como manifesto de um museu aberto, onde a arte dialoga com a cidade.
Convergências e diferenças entre SESC Pompeia e MASP
Embora ambos evidenciem o compromisso social de Lina Bo Bardi, as obras apontam para dimensões distintas de atuação:
Requalificação de Fábrica e Construção Autônoma
No SESC Pompeia, Lina adota a requalificação adaptativa, valorizando a memória industrial e o uso de materiais existentes.
No MASP, cria-se um ícone arquitetônico ex novo, rompendo com o entorno e estabelecendo um marco urbano.
Espaços Segmentados e Monumentalidade Singular
O SESC Pompeia é deliberadamente fragmentado em volumes, promovendo múltiplas descobertas e configurações de uso.
O MASP apresenta um único volume principal que, suspenso, confere monumentalidade e clareza de leitura.
Ação Comunitária e Intervenção Urbana
Em Pompeia, a atenção está na comunidade local, com atividades regulares e participação direta de usuários.
No MASP, o impacto social se dá pela abertura simbólica ao espaço público e pelo desafio ao modelo museológico, beneficiando toda a população da capital.
Em comum, permanece a busca de Lina por espaços flexíveis, permeáveis e integrados ao cotidiano, onde o social se revela tanto na forma quanto na função.
O legado de Lina Bo Bardi na arquitetura brasileira contemporânea
Décadas após sua morte, Lina Bo Bardi continua inspirando arquitetos, urbanistas e gestores culturais. Projetos de reuso adaptativo, como o Instituto Tomie Ohtake em São Paulo ou o Museu da Gamboa no Rio de Janeiro, evocam sua abordagem de diálogo entre memória e inovação. Centros comunitários e parques públicos, muitas vezes idealizados em parceria com a sociedade civil, recuperam o espírito participativo de suas propostas.
Além disso, a valorização do usuário como agente ativo no processo projetual tem se disseminado em ambientes acadêmicos e profissionais. Oficinas colaborativas, consultas populares e métodos de co-design em programas de habitação social são herdeiros diretos da convicção de Lina de que as pessoas não são meras “destinatárias” da arquitetura, mas coautoras de seus espaços.
O legado de Lina Bo Bardi reside na capacidade de aliar a poética formal a um compromisso irrestrito com o social. O SESC Pompeia e o MASP ilustram, em tonalidades distintas, essa vocação: um, voltado à requalificação comunitária e à multiplicidade de usos; o outro, à invenção de um ícone público que redefine o museu como espaço de diálogo urbano. Juntas, essas obras revelam a importância de uma arquitetura que não se fecha em si mesma, mas se abre ao convívio, à improvisação e à participação cidadã. Mais do que edifícios singulares, são convocações permanentes a repensar o papel dos espaços coletivos na construção de uma cultura urbana inclusiva.
Com isso, reafirma-se Lina Bo Bardi não apenas como arquiteta, mas como agente social, cujo ensino ecoa em cada pátio compartilhado, em cada fachada reaproveitada e em cada praça suspensa aberta à cidade.