A Teoria Dominó na Segurança do Trabalho: Uma Visão Sistêmica dos Acidentes e de Suas Causas
Muito além de culpar o trabalhador por um erro, a Teoria Dominó de Heinrich convida à compreensão profunda da dinâmica dos acidentes. Este artigo revela como essa teoria, com mais de 90 anos, ainda é capaz de transformar a forma como investigamos, prevenimos e lidamos com a segurança nos ambientes de trabalho.
SEGURANÇA DO TRABALHO
Quando se fala em acidentes de trabalho, muitas vezes a discussão é reduzida à identificação de culpados. No entanto, os estudiosos da segurança do trabalho nos mostram que essa visão simplista ignora a complexidade envolvida na ocorrência de um acidente. Um dos modelos mais influentes para explicar essa complexidade é a Teoria Dominó, proposta inicialmente por Herbert William Heinrich em 1931 e posteriormente expandida por Frank Bird. A teoria defende que os acidentes são resultados de uma cadeia de eventos interligados — como peças de dominó em fila — e que a eliminação de uma peça pode evitar a ocorrência da perda final.
Este artigo se propõe a explorar minuciosamente os elementos dessa teoria, suas aplicações práticas na segurança do trabalho e os desafios enfrentados pelas empresas que desejam implementar uma cultura de prevenção real, baseada na análise sistêmica de riscos.
Origem e Fundamentos da Teoria Dominó
Herbert Heinrich, engenheiro americano e pioneiro nos estudos sobre segurança industrial, desenvolveu a Teoria Dominó com base na análise de mais de 75 mil acidentes. A teoria é uma metáfora visual: uma fileira de cinco peças de dominó, onde a queda de uma desencadeia a queda das seguintes. Se uma peça for removida, o acidente pode ser evitado.
Heinrich propôs cinco fatores básicos que, dispostos em sequência, levam a um acidente:
Ancestralidade e ambiente social – Aspectos que moldam o comportamento da pessoa.
Falha do indivíduo – Características pessoais que contribuem para atos inseguros.
Atos inseguros ou condições perigosas – Comportamentos ou situações abaixo do padrão.
Acidente – O evento em si (por exemplo, contato com energia, queda, impacto).
Lesão ou dano – A consequência do acidente.
A proposta de Heinrich reforçava que a maioria dos acidentes era causada por atos inseguros, estimando que 88% das causas estavam relacionadas a comportamentos humanos, enquanto apenas 10% se deviam a condições inseguras, e 2% a "causas desconhecidas". Essa visão marcou profundamente a forma como empresas passaram a investigar acidentes.
A Crítica à Interpretação Rasa da Teoria
Embora revolucionária para a época, a Teoria Dominó de Heinrich foi também alvo de críticas. A principal delas diz respeito ao foco excessivo na falha humana como causa de acidentes. Em muitas empresas, isso resultou em uma cultura de culpabilização: identificar o erro de um trabalhador e encerrar a investigação.
Essa abordagem é limitada. Ela ignora fatores sistêmicos, como falhas latentes nos processos, deficiências de treinamento, más decisões gerenciais e ambientes de trabalho mal planejados. Assim, a "culpa" atribuída ao trabalhador encobre outras causas que, se corrigidas, poderiam evitar novos acidentes.
A Evolução com Frank Bird: Uma Visão Sistêmica
Frank Bird, na década de 1960, desenvolveu um modelo mais abrangente baseado na Teoria Dominó, conectando-a à Pirâmide de Acidentes (ou Pirâmide de Perdas). Em sua análise de mais de 1,7 milhão de acidentes, Bird propôs a seguinte relação:
Para cada 1 acidente grave, ocorrem:
10 acidentes leves
30 incidentes com danos materiais
600 quase acidentes
Essa relação reforça que a prevenção deve começar nas pequenas falhas, antes que elas se tornem grandes perdas.
Bird reformulou o modelo de Heinrich para os seguintes elementos:
Falta de Controle (gestão inadequada)
Causas Básicas (fatores pessoais e do trabalho)
Causas Imediatas (atos e condições abaixo do padrão)
Incidente
Perda
Esse modelo tem o mérito de deslocar o foco do “erro humano” para a gestão dos riscos, reconhecendo que a maioria das causas é controlável, desde que haja uma liderança comprometida com a segurança.
Entendendo Cada Peça do Dominó de Bird
Falta de Controle
A origem de muitos acidentes está na ausência de um sistema de controle eficaz. Isso inclui:
Programas de segurança mal planejados.
Normas de prevenção incompletas ou desatualizadas.
Falta de fiscalização e de correção de não conformidades.
A gestão é o primeiro dominó — e o mais estratégico. Se ele for sólido, os demais podem ser evitados.
Causas Básicas
As causas básicas são mais difíceis de identificar, pois são raízes ocultas. Podem ser:
Fatores pessoais: falta de conhecimento, estresse, fadiga, desatenção, atitudes de risco.
Fatores do trabalho: pressão por produtividade, ferramentas inadequadas, ambiente hostil, comunicação ineficaz.
É necessária investigação e análise criteriosa para alcançar essas causas.
Causas Imediatas
São os sintomas mais visíveis, que frequentemente aparecem nas investigações:
Atos abaixo dos padrões: operar máquina sem EPI, improvisar soluções perigosas, não seguir procedimentos.
Condições abaixo dos padrões: piso escorregadio, máquinas defeituosas, iluminação insuficiente.
Essas causas são frequentemente confundidas com “as causas do acidente”, quando na verdade são apenas a ponte entre o problema e o evento.
Incidente
O incidente é o momento do contato com energia, substância ou condição perigosa. Pode ser:
Um acidente com lesão.
Um quase-acidente (sem consequências imediatas, mas com potencial de dano).
A existência de causas imediatas cria o cenário ideal para um incidente.
Perda
A perda é o resultado final do processo:
Lesão corporal.
Danos materiais.
Interrupções no processo.
Impacto ambiental.
Prejuízo financeiro.
O tipo e a gravidade da perda dependem de fatores circunstanciais — mas o caminho até ela é, geralmente, previsível e evitável.
Prevenção Eficaz: Onde Devemos Atuar?
Segundo a Teoria Dominó, o melhor ponto de intervenção não é após a perda, mas antes que a sequência se inicie. Isso significa:
Agir sobre a gestão: treinar líderes, revisar procedimentos, atualizar normas, criar canais de escuta ativa.
Mapear perigos e riscos com precisão, usando ferramentas como APR, HAZOP, LUP, etc.
Fomentar a cultura de segurança, não apenas com punições, mas com envolvimento, reconhecimento e responsabilidade compartilhada.
Atuar apenas no nível do comportamento, sem considerar o contexto, pode ser tão ineficaz quanto empurrar os dominós com mais força esperando que não caiam.
Cultura de Culpabilização vs. Cultura de Prevenção
Empresas imaturas em segurança do trabalho tendem a encerrar a investigação de um acidente quando identificam o autor do “ato inseguro”. Isso é um erro grave. A Teoria Dominó nos ensina que os comportamentos individuais estão inseridos em contextos organizacionais, e que, geralmente, as barreiras sistêmicas também falharam.
Exemplo: um trabalhador operava uma serra sem proteção. Investigando, descobre-se que:
A proteção estava quebrada há semanas.
A chefia sabia, mas ignorou o pedido de manutenção.
Não havia EPI disponível.
A meta de produção era irrealista.
A falha humana existiu, mas está longe de ser a única responsável. Isso mostra a importância de análises completas, como a Análise Causal de Acidentes, que investiga todas as peças do dominó.
Interromper a Queda é Possível
A Teoria Dominó permanece atual porque nos lembra de uma verdade simples e poderosa: acidentes não são eventos isolados, mas consequências de uma sequência de falhas. Essa sequência pode ser interrompida em diversos pontos — mas, preferencialmente, nos seus estágios iniciais, como a gestão e os perigos não controlados.
Para isso, é preciso abandonar a lógica do “culpado da vez” e adotar uma visão sistêmica, que reconheça a complexidade do ambiente de trabalho e atue preventivamente com base em dados, planejamento e gestão eficiente.
Empresas maduras em Segurança e Saúde do Trabalho são aquelas que investigam, aprendem e melhoram continuamente. Elas sabem que eliminar os dominós iniciais é investir na raiz da segurança. E esse investimento começa, invariavelmente, pela cultura organizacional e pelo compromisso genuíno com a vida.



