Fatores Humanos e a Multicausalidade dos Acidentes

Incidentes e acidentes raramente decorrem de uma única causa. A compreensão da multicausalidade evidencia que comportamentos, falhas sistêmicas e decisões organizacionais interagem, tornando a responsabilidade um aspecto compartilhado entre todos os envolvidos no ambiente de trabalho.

SEGURANÇA DO TRABALHO

5/19/202511 min read

people working on building during daytime
people working on building during daytime

O comportamento humano é naturalmente variável. Essa instabilidade é essencial para a adaptação a mudanças constantes no ambiente e nas relações sociais. Se o ser humano mantivesse sempre o mesmo padrão de ação e pensamento, enfrentaria sérias dificuldades para lidar com as exigências diárias que surgem em sua vida pessoal e profissional.

Quando uma pessoa consegue perceber com clareza os impactos de suas ações, mesmo aquelas que desviam do comportamento esperado, ela tem a oportunidade de corrigir o rumo. Isso reduz a frequência de erros e permite respostas mais eficientes. Assim, os erros não devem ser analisados isoladamente: é preciso observar o contexto, as tarefas envolvidas e as condições do ambiente. Ambientes bem organizados, que permitem ao indivíduo identificar falhas com rapidez, tendem a apresentar menor incidência de erros.

É importante lembrar que cada pessoa leva consigo aspectos emocionais e subjetivos que afetam a forma como ela interage com o ambiente ao seu redor. Esses elementos podem influenciar tanto a execução de tarefas quanto o próprio espaço em que se trabalha, tornando cada ambiente único. Por isso, agir sobre esses espaços exige mais do que medidas técnicas — é necessário sensibilidade para compreender o conjunto de fatores que os tornam mais ou menos propensos a falhas.

Desvios de comportamento fazem parte da vida. Eles não são exceção, mas sim parte do processo de evolução e adaptação. Entender como e por que os erros acontecem passa por compreender a dinâmica dos sistemas em que se está inserido e refletir sobre as possíveis consequências de cada escolha. Em um mundo tão complexo, até mesmo as ações mais simples carregam riscos de falha, e reconhecer isso é fundamental.

Tratar o erro humano como um fenômeno uniforme é um equívoco. Existem diferentes tipos de erro, que surgem em níveis distintos e exigem estratégias variadas para prevenção e correção. Compreender essa diversidade é essencial para lidar com as causas reais de falhas e implementar ações eficazes.

Diante disso, os mecanismos de controle dentro dos sistemas ganham papel de destaque. Eles existem justamente para fortalecer a capacidade de resistência diante dos efeitos de um erro. Quando não for possível evitar uma falha, o ideal é preparar o sistema para minimizar seus impactos. Essa abordagem valoriza a resiliência e reforça a importância de pensar de forma estratégica diante da inevitabilidade de certas situações.

A ocorrência de eventos indesejados — como incidentes e acidentes — geralmente não se deve a um único fator. Ela é fruto da chamada multicausalidade, ou seja, resulta da combinação de diversos elementos que, direta ou indiretamente, contribuíram para o desfecho. Por isso, não se pode afirmar que a responsabilidade é sempre exclusiva do empregador. Na prática, ela pode (e muitas vezes deve) ser compartilhada com o trabalhador e com outros atores do sistema organizacional.

Profissionais da área de Saúde e Segurança do Trabalho (SST), em muitos casos, atuam em posições hierárquicas abaixo da alta direção. Isso limita sua capacidade de intervir diretamente no nível organizacional, principalmente quando decisões estratégicas são tomadas sem sua participação. Ainda assim, esse profissional não deve se omitir. É seu papel realizar inspeções periódicas, observar falhas e vulnerabilidades nos processos e levar essas informações para os gestores, especialmente quando houver risco iminente de falhas mais graves.

Empresas que adotam a segurança como um valor essencial costumam envolver os profissionais de SST nas decisões desde o início. No entanto, esse nível de maturidade e integração é ainda uma exceção, exigindo uma cultura organizacional sólida e comprometida com a prevenção.

A sequência que leva a um evento indesejado, geralmente, começa com decisões equivocadas tomadas pela organização, influenciadas por sua cultura e por prioridades operacionais. Essas decisões geram o que se chama de falhas latentes — condições desfavoráveis que se espalham pela estrutura organizacional sem serem imediatamente percebidas. Exemplos incluem sobrecarga de trabalho, prazos incompatíveis, falta de preparo técnico, ou uso de equipamentos inadequados.

No nível individual ou grupal, essas falhas latentes interagem com fatores psicológicos e cognitivos dos trabalhadores. Ainda que existam controles — como normas, treinamentos, barreiras físicas, EPIs e sistemas de alerta — nenhum deles é absolutamente infalível. Todos estão sujeitos a falhas, desgastes e limitações de eficácia.

Um erro humano raramente é o início do problema; ele geralmente é a manifestação final de uma cadeia de decisões e omissões. O trabalhador “na ponta” da operação, portanto, não é a origem do acidente, mas o último elo visível de um processo que já vinha se formando. Quando falhas latentes não são identificadas nem corrigidas, elas se acumulam e podem formar verdadeiros “buracos” nos controles do sistema. Isso aumenta a chance de uma cascata de erros — uma sucessão de pequenos deslizes que, somados, resultam em um grande evento indesejado.

Essas falhas latentes funcionam de forma semelhante a agentes patogênicos no corpo humano. Permanecem ocultas, às vezes por muito tempo, até que se combinem com condições locais adversas — como estresse, fadiga, consumo de álcool ou sono insuficiente — e rompam a estabilidade do sistema, resultando em um “adoecimento” organizacional. Embora inevitáveis, essas falhas podem (e devem) ser gerenciadas de forma sistemática.

Todo processo decisório dentro de uma organização, portanto, influencia o modo como o trabalho é estruturado e executado. E é justamente no dia a dia das operações que as condições para erros são criadas. Por isso, o gerenciamento eficaz dos erros exige, antes de tudo, compreender seus princípios fundamentais:

  • Os erros, por si só, não são prejudiciais. Eles fazem parte do processo de aprendizagem e, quando bem compreendidos, contribuem para a melhoria contínua dos sistemas.

  • As características humanas são imutáveis. Por isso, o foco da intervenção deve estar nas condições de trabalho em que essas características estão inseridas.

  • O erro é composto por dois elementos: o estado mental (associado a fatores humanos internos) e a situação (condições externas que favorecem o desvio). Ambos precisam ser analisados em conjunto.

  • Os profissionais mais capacitados também estão sujeitos a erros. Ninguém está imune. Por isso, a prevenção deve considerar todos os níveis hierárquicos.

  • Todo erro tem um histórico. Investigar suas causas é essencial para evitar repetições.

  • Não existe uma única abordagem correta. Os fatores humanos se manifestam de formas distintas em diferentes organizações, exigindo estratégias variadas de gestão.

Além disso, é importante destacar o papel da automatização de tarefas. Quanto mais familiar e repetitiva for uma atividade, menor tende a ser a atenção dedicada a ela. Esse comportamento automático é eficiente, mas também vulnerável. Atividades como dirigir, digitar, ou mesmo subir uma escada, são executadas quase sem reflexão. Mas basta tentar racionalizar cada movimento dessas ações habituais para que o desempenho se torne hesitante — e até inseguro.

Esse fenômeno mostra que o cérebro humano não opera bem sob excesso de controle consciente em tarefas rotineiras. Por isso, sistemas bem projetados devem considerar o equilíbrio entre automação e atenção, minimizando os riscos sem comprometer a fluidez das operações.

Em resumo, a gestão de erros humanos deve ser sistêmica, integrando aspectos organizacionais, operacionais e psicológicos. Só assim será possível transformar falhas em oportunidades reais de aprendizado e fortalecimento da segurança.

Outro aspecto importante a ser considerado é que a intenção de realizar uma tarefa raramente é colocada em prática de forma imediata. Na maioria das vezes, ela permanece armazenada na memória até que o momento certo para executá-la chegue. No entanto, essa espera pode ser comprometida pelo esquecimento, levando a situações em que a pessoa se pergunta: “O que eu vim fazer aqui mesmo?”. Em outros casos, qualquer interrupção na cadeia de pensamentos — causada por distrações de diferentes origens — pode fazer com que a intenção inicial se perca. Há ainda situações em que a mente se antecipa ao próximo passo. Isso acontece porque o ser humano tende a projetar o que está por vir, antes mesmo de concluir o que está fazendo, desviando a atenção e aumentando o risco de erro na execução da tarefa.

Em resumo, a rotina prevê uma sequência de ações necessárias para a realização de uma tarefa. Contudo, se houver qualquer distração ou interrupção — ainda que mínima — o processo pode desviar de seu curso, levando a erros simples ou, em casos mais graves, a acidentes sérios.

Além desses fatores, Reason e Hobbs (2003) destacam a importância dos procedimentos operacionais, que funcionam como guias para a execução das tarefas. O problema é que, à medida que as pessoas automatizam suas atividades, tendem a consultar cada vez menos essas fontes de referência. Isso se torna crítico quando há alterações na rotina de trabalho. Se os procedimentos não forem revisados, a tarefa continuará sendo feita como sempre foi, ignorando as mudanças recentes. Isso pode ocorrer por excesso de confiança, descrédito no documento (por ser mal escrito, complexo ou incompatível com a realidade do trabalho) ou por um sentimento de desnecessidade. Daí a importância de desenvolver procedimentos operacionais claros, acessíveis e atualizados.

Complementando essa visão, McCarthy (1999) chama atenção para o fato de que a maioria dos erros e acidentes ocorre quando a pessoa está começando um novo trabalho ou quando já está há muito tempo na mesma função. No início, o indivíduo tem pouco conhecimento e muita ansiedade. Com o tempo, conforme o conhecimento aumenta, a ansiedade diminui. No entanto, pode surgir uma apatia perigosa, associada ao sentimento de “posso fazer isso de olhos fechados”. É nesse ponto que muitos acidentes acontecem. O período mais seguro é aquele em que o trabalhador tem um bom nível de conhecimento, mas ainda conserva certa ansiedade e atenção diante do que ainda não domina.

Outro aspecto relevante na investigação de incidentes ou acidentes é a tendência de culpar o indivíduo envolvido. Diante de um erro, sobretudo quando tem consequências graves, é comum pensar que a pessoa foi irresponsável, descuidada, incompetente ou até estúpida. No entanto, é essencial adotar uma postura investigativa e compreender por que as pessoas não fazem o que deveriam fazer. Por que tendemos a culpar os indivíduos em vez de analisar as circunstâncias que contribuíram para o erro? Ao perguntar o motivo do erro, provavelmente ouviremos que as condições levaram a pessoa a agir daquela maneira. Tais condições podem incluir: procedimentos inadequados, instrumentação confusa, falta de conhecimento, conflitos de prioridade, rotulagem ineficaz, falhas de comunicação, layout mal planejado, sobrecarga de tarefas, entre outros.

Portanto, ao abordar o erro humano, é fundamental reconhecer que ele pode ser classificado em dois grandes grupos: os erros não intencionais e os intencionais. Os próprios nomes já indicam a natureza de cada um e mostram a importância de diferenciar falhas motivadas por distração ou desatenção daquelas em que houve decisão consciente de desviar do procedimento.

Compreendendo os Tipos de Erro Humano

Existem diferentes maneiras pelas quais os erros humanos podem ocorrer, e compreendê-las é essencial para lidar com suas causas e consequências de forma eficaz. Em geral, os erros podem ser divididos entre aqueles que ocorrem sem intenção e os que envolvem decisões deliberadas.

  • Erros Não Intencionais

Esses erros acontecem sem que a pessoa perceba ou tenha a intenção de cometê-los. Podem ser classificados em dois tipos principais:

  • Deslizes e Lapsos

Comuns em tarefas rotineiras, esses erros surgem quando a mente se desconecta parcialmente da ação em curso. O deslize costuma ser resultado de uma falha de atenção; o lapso, por sua vez, está mais ligado à memória.

Eles ocorrem, por exemplo, quando uma pessoa se distrai durante uma atividade habitual ou quando entra no “modo automático”, como quando:

  1. Alguém prepara o café da manhã distraído e acaba jogando a fruta no lixo e tentando comer a casca.

  2. Uma pessoa decide ir a um laboratório no sábado, mas, por hábito, segue o caminho que sempre faz para o trabalho.

  3. Surge o famoso “branco” quando tentamos lembrar de uma palavra e ela simplesmente desaparece da mente.

  4. Alguém vai até outro cômodo com uma intenção clara, mas esquece o motivo ao ser interrompido por outro estímulo no caminho.

  • Equívocos

Diferente dos deslizes e lapsos, o equívoco ocorre durante o planejamento da ação, antes mesmo de sua execução. Nesses casos, a pessoa acredita estar fazendo a coisa certa, mas comete um erro por falta de conhecimento ou interpretação equivocada.

Alguns exemplos comuns incluem:

  1. Decidir por um caminho em uma estrada desconhecida acreditando que é a rota correta, com base em informações incompletas ou mal interpretadas.

  2. Sugerir um presente aparentemente inofensivo, como um perfume, sem saber que a pessoa presenteada tem alergia.

Em ambos os casos, as intenções são boas, mas o resultado acaba sendo um erro.

  • Erros Intencionais

Aqui entram as chamadas violações — atos deliberados que vão contra normas ou procedimentos estabelecidos. Na maioria das vezes, a motivação está na pressão por resultados ou na tentativa de simplificar processos percebidos como burocráticos ou ineficazes.

Essas violações podem ocorrer por dois motivos principais:

  • Violações Culturais

Tornam-se parte da rotina e costumam ser justificadas por conveniência, economia de tempo ou pela ideia de que se está apenas “facilitando” a execução da tarefa.

  • Violações Oportunas ou Excepcionais

Acontecem em situações emergenciais ou quando há falhas no sistema: procedimentos desatualizados, difíceis de compreender ou simplesmente não aplicáveis à situação real. Muitas vezes, essas violações começam como exceções e acabam se tornando comuns com o tempo.

Um ponto crítico é que a gestão dessas situações não deve se basear em punições, mas sim na criação de sistemas que tornem o cumprimento das regras mais vantajoso do que sua quebra.

  • Sabotagem

É a única forma de erro deliberado com intenção de causar dano. Seu objetivo é prejudicar pessoas ou estruturas, podendo até ser considerada uma conduta criminosa. Devido à sua natureza, geralmente é tratada à parte na análise de erros humanos.

O Desafio da Gestão

Diante dessa diversidade de erros, é fundamental que organizações adotem uma abordagem mais criteriosa. Sim, errar é humano. Mas isso não significa que os erros devem ser ignorados ou tratados de forma genérica.

Infelizmente, muitas empresas ainda utilizam o termo “ato inseguro” como explicação padrão para incidentes. Isso leva à adoção de medidas genéricas, como treinamentos, que só resolvem uma parte do problema. Treinar pessoas é importante, mas não resolve falhas de atenção, lapsos de memória ou pressões organizacionais que incentivam violações.

É hora de substituir o conceito vago de “ato inseguro” por uma compreensão mais clara dos diferentes tipos de erro humano. Essa distinção permite intervenções mais eficazes, reduz desperdícios de tempo e recursos, e contribui para um ambiente de trabalho mais seguro e produtivo.

A mudança não é apenas conceitual: desde 2009, o termo “ato inseguro” deixou de ser reconhecido formalmente em documentos oficiais do Ministério do Trabalho. Além disso, diferentes iniciativas têm surgido para reforçar a importância de abandonar esse rótulo e adotar uma visão mais precisa sobre o erro humano.

Reconhecer os diferentes tipos de erro é um passo essencial para promover uma cultura organizacional mais justa, eficiente e voltada para o aprendizado contínuo.

Deslize / Lapso (Erro Não Intencional e Inconsciente)
  • Causa: Falta de atenção, execução de tarefas em piloto automático.

  • Exemplo típico: Esquecer o cartão no caixa eletrônico.

  • Soluções ineficazes: Treinamento tradicional (não atua na raiz do problema).

  • Soluções eficazes: Poka Yoke (à prova de falhas) — projetos e mecanismos que reduzem a chance de erro por distração. Exemplos:

    • Caixa eletrônico: mensagem + som + LED antes de liberar dinheiro.

    • Sistemas “delete”: confirmação dupla, botões invertidos.

    • Trava automática de portas em veículos.

    • Embalagens diferenciadas de shampoo e condicionador.

Como o erro é inconsciente, é preciso projetar o ambiente e os sistemas assumindo que as pessoas vão errar — e evitar que esse erro gere consequências graves.

Equívoco (Erro Não Intencional por Falta de Conhecimento ou Habilidade)
  • Causa: Julgamento errado baseado em conhecimento ou capacitação inadequada.

  • Exemplo típico: Tomar uma decisão achando que está certo, mas sem conhecimento suficiente.

  • Soluções eficazes:

    • Treinamento bem direcionado.

    • Capacitação contínua.

    • Manuais claros, simulações, mentorias.

Como o erro decorre de lacuna de conhecimento, a solução está em qualificar melhor a pessoa para que ela consiga tomar decisões corretas no futuro.

Violação (Erro Intencional / Quebra Deliberada de Regras)
  • Causa: Decisão consciente de ignorar uma norma ou procedimento.

  • Exemplo típico: Um colaborador que pula uma etapa do checklist por achar desnecessário.

  • Soluções possíveis:

    • Análise caso a caso: entender o motivo da violação.

    • Medidas disciplinares (quando for negligência ou má-fé).

    • Revisão de processos ou cultura organizacional (quando a violação for sintoma de problemas sistêmicos).

A violação pode ter múltiplas causas — da cultura da empresa até a falta de recursos — e por isso exige investigação profunda e respostas específicas.